A travessia

Por Severino Nunes de Melo

Era dia de feira em Ouro Velho (PB) e Caboclo Ferreira logo cedinho se dirigiu à cidade acompanhado por uma de suas filhas. A moça, com andar faceiro e uma beleza cabocla despertava desejos, dando para notar que depois do vestido de chita, da combinação e da anágua, existia um par de pernas morenas e bem torneadas. Isto gerava a cobiça dos homens que seguiam aquele mesmo caminho.

Naquele ano tinha chovido bastante e o riacho Lava Pé estava transbordando, era água de um canto a outro e como não existia arrodeio, todos tinham que atravessar no mesmo local. Para os homens não havia problema, bastava tirar as alpargatas e arregaçar as calças. Porém, para as mulheres a dificuldade era maior, o nível da água chegava quase à cintura e naquela época não era permitido descobrir em público os joelhos.

Chegando a beira do riacho, Caboclo notou a presença de um jovem mancebo sentado numa pedra na outra margem. Com a presença de um homem estranho ali não seria possível à moça levantar as vestes e realizar a travessia. Caboclo, educadamente, pediu ao moço para se retirar por um instante, ficar por trás de uma moita e assim liberar a passagem da donzela.

O homem com cara de má vontade, retrucou dizendo que aquela estrada pertencia a todos e, portanto, ele não iria sair do local onde estava. Notava-se que o dito cujo estava mesmo era querendo se aproveitar da situação e ver as pernas da moça. Caboclo tirou as alpargatas de sola, arregaçou as calças, ajeitou a faca de dez polegadas na cintura, pediu à filha que aguardasse e calmamente atravessou o riacho. Na outra margem aproximou-se, por trás do cidadão colocando uma das mãos no seu pescoço e, com a força descomunal que tinha, empurrou a cabeça do elemento na água cobrindo-a totalmente de lama. Feito isto, virou-se para a filha e autorizou a sua passagem. A jovem enrolou as vestes na cintura, cuidando para evitar que a combinação e a anágua, peças brancas de morim, sofressem respingos de lama e sem pressa atravessou o riacho. Só assim Caboclo Ferreira liberou a cabeça do coitado, que sufocado estrebuchava na lama.

Depois de calçar as alpargatas e já pronto para seguir viagem, Caboclo ajeitou a faca na cintura e perguntou ao apavorado indivíduo:

– O senhor conseguiu ver alguma coisa?

E ele, tirando a lama do rosto, respondeu:

-Não sinhor, eu fechei bem os zóis e ainda apruveitei pra beber água.

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