Por Zizo Mamede
Está fora de moda questionar o capitalismo até mesmo nos circuito da chamada esquerda política. Quem o fizer será taxativamente acusado de anacrônico e fossilizado. A sacralização do discurso único neoliberal ainda perdura, mesmo na América Latina, que na última década tem refreado a velha receita de mitificação do mercado, pelo menos em alguns países.
Mas, mesmo os governos ditos de esquerda nestas paisagens da América ibérica – que lideram projetos nacionais com alguma marca keynesiana, com políticas distributivas, retomada do papel do Estado na economia – não ousam anunciar que fazem um esforço na contracorrente dos dogmas da ortodoxia liberal. Fazem, mas não dizem que fazem porque assumir tal postura provoca pandemônios nos mercados.
Qualquer “escorregão” heterodoxo de um chefe de Estado ou mesmo de um ministro da área econômica dos governos, instantaneamente dá lugar a hecatombes nas bolsas de valores, no câmbio, nas agências de riscos. Qualquer heresia contra os cânones do mercado dá lugar a acusações de intervencionismo estatal.
Este ambiente intolerância ao pensamento múltiplo sustenta um dos pilares do atual capitalismo financeiro: a extração da riqueza produzida pela sociedade através da dívida pública. Os juros e demais serviços da dívida pública são a forma mais eficiente e segura de apropriação da mais-valia, para usar aqui um conceito arcaico. Há todo um conluio dos bancos privados, dos rentistas, das agências de riscos e da grande imprensa em torno da reprodução da dívida pública: Quanto mais juros e superávits primários, um tanto melhor.
Na década de 1980, Bernardo Kucinski e Sue Branford publicaram “A Ditadura da Dívida”, um clássico sobre o endividamento da América Latina. Bem antes, em 1970, o escritor uruguaio Eduardo Galeano publicou o antológico “As Veias Abertas da América Latina”, uma amarga retrospectiva da usurpação das riquezas do continente desde a colonização. – Hoje não se fala mais nisto, sob o risco de ser acusado de chavismo.
Tomando o Brasil como exemplo: atualmente pouco se fala da dívida pública externa porque no último decênio o país se tornou credor internacional, mas também não se fala com vigor e transparência da dívida pública interna, que está na casa dos dois trilhões de reais, ou seja, 35 % (trinta e cinco por cento) do Produto Interno Bruto (PIB) anual.
A situação da dívida pública interna brasileira já foi pior: Na era FHC correspondia à cerca de 55 % (cinquenta e cinco por cento) do PIB. O recuo alcançado pelos governos petistas na relação dívida/PIB diminui a sangria, mas o principal efeito disto é dar mais garantias aos rentistas de que o governo brasileiro tem maior capacidade de pagar os compromissos com os seus credores. Em suma, cerca de um trilhão de reais por ano. – E cada um por cento a mais nos juros da economia corresponde a 20 bilhões de reais a mais para os rentistas por ano e 20 bilhões a menos para a saúde, educação, infraestrutura.
A dívida interna é uma hemorragia que sangra as finanças públicas e nutre uma ínfima minoria de rentistas que formam a elite financeira do país.