Por Zelito Nunes
Lá pelos meus dez anos, lembro que apanhei algodão no roçado do meu pai durante quase um mês .
Sol quente, trabalho tão duro quanto pouco produtivo.
Um dia de serviço meu não chegava a cinco quilos de algodão que papai apesar de ter plantado acabava nos comprando a ainda arredondava o peso.
Mas no meu caso, todo aquele sacrifício tinha um objetivo definido: a compra da minha primeira lanterna Rayovac.
E foi o que fiz com todo o dinheiro da minha labuta e mais uns trocados vindos da economia de minha terna mãe.
Aproveitando uma viagem de Antônio um dos meus irmãos mais velhos à Campina Grande, confiei-lhe a tarefa e desde então dormi muito pouco e perdi a conta das horas que vigiei a estrada de terra batida que dava acesso à nossa moradia à espera de num momento pra outro, ver finalmente surgir numa daquelas ladeiras, a sua figura, com uma mala na mão e a minha lanterna dentro.
É preciso dizer que uma viagem à Campina durava muito naquele tempo.
Como não deve durar hoje pra os meninos que ainda vivem por lá, em função do asfalto e a velocidade dos veículos atuais, posto que fora isso, “tudo está como sempre foi” como no Coito das Araras da minha querida Cátia de França.
Bom, mas chegou enfim o dia em que meu irmão, surge no meu horizonte como um último soldado sobrevivente de uma guerra.
Abriu a maleta e dela tirou uma caixa amarela e azul com a minha «Rayovac» cromada novinha em folha já equipada com duas possantes pilhas que agente chamava «elemento» (a pilha, no nosso idioma matutês, era a própria lanterna).
Depois de uma noite de muito acende-apaga, fui dormir o camarada mais feliz do planeta com minha Raiovaque debaixo do travesseiro.
No dia seguinte, depois de mostrar pra todos os amigos, filhos dos moradores, chamei Agenor que era o meu cabra de confiança, um ano mais velho, e juntamente com mamãe, combinamos trazer de volta pra casa uma cabra nossa que já estava na casa de dona Quitéria costureira no vizinho sítio Catucá há mais de uma semana.
O Catucá ficava a uns quatro quilômetros, coisa que se resolveria em pouco tempo entre a ida e volta mesmo à pé.
Mas como a minha intenção era viver a primeira aventura usando a lanterna, combinei com o companheiro que só íamos sair lá pelas quatro horas o que fizemos em marcha muito lenta pra que a noite nos alcançasse com aquela poderosa arma, a minha lanterna.
Chegamos sem muito alvoroço no Catucá já à tardinha, falamos com Dona Quitéria que amarrou a cabra que era mansinha com uma corda fina, se despediu de nós e foi cuidar dos seus afazeres.
Saímos por ali devagar sem pressa esperando pela noite que parecia chegar preguiçosamente.
Agenor na frente, a cabrinha no meio e eu tangendo atrás sem maiores problemas já que ela concordava plenamente em voltar pra casa.
Não havíamos percorrido nem metade do nosso trajeto, quando a noite desabou sobre nós com magnífica velocidade.
E o que seria a vereda por onde voltávamos, passou a ser apenas uma listra estreita contornada pela espessa caatinga fechada naquele inverno de abril.
Eu de lanterna acesa, Agenor confiante e a cabrinha, ela mesma, quem disse que quis mais andar?
Puxões pelos chifres, empurrões pelos quartos e até cipoadas nas costelas nada disso lhe convencia a ir em frente.
Animal de hábitos diurnos, não arredaria mais um pé dali.
E agora Agenor?
“Vamo soltar essa peste aqui e vamo simbora”.
E foi o que fizemos com a madame que entrou no aceiro da vereda sem antes me fitar com dois terríveis e incandescentes olhos trespassados pelo foco da lanterna.
O resto, foi o cantar do bacurau e outros bichos da noite e o breu que nos cercava no meio da caatinga longe ainda de casa.
Quase voando empinamos no «giro» de casa onde encontrei mamãe preocupada com tanta demora.
Ainda acompanhei com o foco da lanterna, o trajeto do meu companheiro, com destino à sua moradia que ficava a uns quinhentos metros do nosso terreiro até ele desaparecer na escuridão daquele abril, coisa que não era novidade pra ele.
Quanto a mim, depois de um banho de água gelada, desmoralizado e frustrado fui dormir sem a história que eu tinha preparado pra contar no dia seguinte.
Tudo por culpa de uma cabrinha imprudente.
Do atual livro de Zelito Nunes, “NO SERTÃO ONDE EU VIVIA”