Por Sérgio Bezerra
Todo ser humano no exercício do seu ofício já passou por situações inusitadas ou hilárias. Com seu Gilmar, o Uá de Zé Gomes, não poderia ser diferente.
Seu Gilmar deste cedo se iniciou nos serviços cartoriais, primeiro no Cartório de Registro de Imóveis e Títulos e Documentos e depois como serventuário da Justiça – e esta experiência o credenciou a ser um dos melhores datilográficos de outrora. Tal habilidade sempre levou os juízes que passaram pela Comarca de Monteiro a escolhê-lo para datilografar as atas ou os termos das audiências.
Naquele tempo, o ofício não era mole, não. Se o datilógrafo errasse, teria que tirar o papel da máquina, apagar o erro sem deixar mancha e devolver o papel para o mesmo lugar. Se o danado do papel entortasse, o martírio se repetia, quantas vezes fossem necessárias, até que tudo ficasse devidamente aprumado. Não existia, na época, a brilhante tecla backspace.
Ocorre que, certo dia, o saudoso Alexandre de Paulo da Farmácia, o Gato, amigo do peito de seu Gilmar e um dos melhores jogadores de futebol que eu vi jogar, foi levado às barras da Justiça para assumir a paternidade de duas crianças. É de bom tom esclarecer que a ação foi julgada procedente. Ressalte-se que os menores se tornaram saudáveis adolescentes que enchem de orgulho o gato, esteja ele onde estiver.
Pois bem. Quando o juiz Octanny Pereira Batista entrou na sala de audiência estranhou logo a posição em que seu exímio datilógrafo estava sentado. Estava afundado na dura cadeira de madeira, de modo que a máquina de escrever Olivetti ficou quase cobrindo o seu rosto.
O experiente juiz foi logo indagando se seu auxiliar estava com problemas na coluna ou coisa do tipo. Tendo de imediato seu Gilmar respondido com um inaudível “não”.
A audiência transcorria devagar, quase parando, porque o zeloso serventuário errava em demasia, de modo que o cesto estava cheio papel.
Entediado com o tardar da hora, a fome apertando e já encabulado, o juiz, olhando para baixo (tendo em vista o auxiliar estava praticamente enterrado na cadeira), se dirigiu novamente a ele:
– Seu Gilmar, tá acontecendo alguma coisa? O senhor não costuma errar desse jeito.
Antes da resposta, o promotor Sagres, também desconfiado, emendou:
– Tem mistério aí.
O oficial de justiça Raé, uma mistura de filósofo e poeta, não deixou por menos:
– Só pode ter ciência nisso… Hum! Tem ciência nisso!
Foi pior. Diante dos olhares desconfiados, seu Gilmar errou ainda mais.
Lá pras tantas, atendendo às perguntas do brilhante advogado Zé Neves, patrono do Gato, a promovente foi perguntada qual o motivo que a levou a apontar com tanta certeza o promovido como pai dos menores.
Sem titubear, ela afirmou:
– Ói, doutor, o sujeito tem tanta certeza que é o pai das crianças que nunca deixou de mandar dinheiro para o sustento. E tem mais, doutor: quem sempre me entrega o dinheiro é Rona de Vavá, que tá lá fora esperando a hora pra entrar e mentir aqui pro senhor; ele e esse tal de Uá, que o senhor chama de seu Gilmar, que desde que eu sentei aqui tenta se esconder por traz da máquina de escrever, pensando que eu não ia reconhecer.
O juiz abriu um sorriso irônico, olhou pro brilhante serventuário, e disse:
– Desfeito o mistério, ordeno que o senhor volte a se sentar na posição de costume, pra ver se terminamos essa audiência hoje.
Seu Gilmar, todo encabulado, vermelho que só pimentão, sentou-se normalmente e ainda ouviu Raé, com ar de sábio, sustentar:
– Eu não disse que tinha ciência, doutor?