O presidente Jair Bolsonaro chamou nesta quinta-feira de “política” a decisão do ministro Alexandre de Moraes (STF) que, um dia antes, anulou a nomeação de Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal. “Eu respeito a Constituição e tudo tem um limite.”
Na saída do Palácio da Alvorada, antes de embarcar para Porto Alegre (RS), Bolsonaro se referiu à decisão judicial como uma “canetada” e argumentou que Moraes quase gerou uma crise institucional.
“Se [Ramagem] não pode estar na Polícia Federal, não pode estar na Abin [Agência Brasileira de Inteligência]. No meu entender, uma decisão política”, declarou.
O presidente reiterou que a AGU (Advocacia-Geral da União) vai recorrer da decisão, mas disse que, diante da decisão do Supremo, o governo busca um novo nome para o comando da PF.
Em outra investida contra Moraes, Bolsonaro cobrou “rapidez” do ministro para liberar o julgamento da ação no Plenário da Corte. “Não justifica a questão da impessoalidade. Como o senhor Alexandre de Moraes foi parar o Supremo? Amizade com o senhor Michel Temer, ou não foi?”, disse o presidente, em uma referência à indicação de Moraes ao STF pela então presidente da República.
“Agora tirar numa canetada e desautorizar o presidente da República com uma canetada dizendo em impessoalidade? Ontem quase tivemos uma crise institucional, quase. Faltou pouco”, disse Bolsonaro. “Eu não engoli ainda essa decisão do senhor Alexandre de Moraes.”
A decisão de Moraes se baseia, principalmente, nas afirmações de Bolsonaro de que pretendia usar a PF, um órgão de investigação, como produtor de informações para suas tomadas de decisão.
O ministro concedeu liminar (decisão provisória) a uma ação protocolada pelo oposicionista PDT, que alegou “abuso de poder por desvio de finalidade” com a nomeação do delegado para a PF.
Moraes destacou que sua decisão era cabível pois a PF não é um “órgão de inteligência da Presidência da República”, mas sim “polícia judiciária da União, inclusive em diversas investigações sigilosas”.
Na decisão, o ministro afirmou haver “inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”, acrescentando que, “em um sistema republicano, não existe poder absoluto ou ilimitado, porque seria a negativa do próprio Estado de Direito”.
Ramagem chefiou a segurança de Bolsonaro durante a campanha de 2018, tornou-se amigo da família e virou diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
No sábado (25), a Folha mostrou que uma apuração comandada pelo STF, com participação de equipes da PF, tem indícios de envolvimento de Carlos em um esquema de disseminação de fake news.
Para a maioria dos especialistas ouvidos pela Folha, foi correta a decisão de Moraes pela suspensão do ato. De acordo com eles, o poder de nomeação do presidente não é absoluto e deve respeitar as regras previstas pela Constituição, como impessoalidade, moralidade e legalidade.
Não é a primeira vez que o Judiciário suspende nomeação discricionária da Presidência da República. Isso já ocorreu na ocasião da nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como ministro da Casa Civil pela então presidente Dilma Rousseff (PT) e também de Cristiane Brasil (PTB) como ministra do Trabalho durante a gestão de Michel Temer (MDB).
Há quem afirme, no entanto, que seria preciso haver provas mais contundentes para que a nomeação fosse anulada neste momento. O professor de direito constitucional da USP Elival da Silva Ramos vê ativismo judicial na decisão e afirma que ela cria um precedente ruim.
Para ele ainda não há provas suficientes de que a nomeação de Ramagem seria abuso de poder, mas apenas indícios. Segundo ele, apesar de a liminar (decisão provisória) poder ser concedida sem provas cabais, Ramos defende que, por se tratar da suspensão de um ato discricionário, seria preciso haver provas mais maduras.
Ainda na tarde de quarta-feira, Bolsonaro desautorizou a AGU e disse que vai recorrer da decisão do ministro do STF. Mais cedo, a AGU havia divulgado nota pública na qual afirmou que não recorreria da suspensão da posse.
“É dever dela [AGU] recorrer”, disse Bolsonaro. “Quem manda sou eu e eu quero o Ramagem lá”, disse Bolsonaro, que momentos antes, em solenidade no Palácio do Planalto, havia afirmado que seu sonho de nomear o delegado para o cargo de diretor-geral “breveme
A decisão de Moraes entra para a série de reveses que a corte impôs ao governo federal nos últimos dois meses e mantém pressão do tribunal sobre Jair Bolsonaro. Desde que a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou pandemia do novo coronavírus, em 11 março, o STF contrariou os interesses do Executivo em ao menos 12 ações.
O despacho de Moraes sobre a PF foi na mesma linha. Esse caso, porém, revelou um componente a mais na relação entre os Poderes, na avaliação de ministros de tribunais superiores.
Ao suspender a nomeação do escolhido de Bolsonaro para comandar a corporação, eles avaliam nos bastidores que Moraes um mandou recado claro de que a corte não aceitará interferência na PF, sobretudo em dois inquéritos sob sigilo: os que investigam a organização de atos pró-intervenção milita r e a disseminação de fake news, que tem um filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), na mira como suposto articulador de um esquema de disseminação notícias falsas.
Carlos é o filho mais próximo de Ramagem. As duas investigações são caras para uma ala do STF.
Desde que o ministro Dias Toffoli, presidente da corte, instaurou o inquérito sobre notícias falsas contra ministros do STF, em março de 2019, ele foi alvo de críticas de procuradores e investigadores ligados à Lava Jato.
Toffoli, porém, sempre fez questão de defender a legalidade da medida para levá-la adiante. Na visão dele e de outros ministros, a investigação é importante para elucidar a rede de ataques que os atinge e conter esses disparos.
Essa apuração foi muito criticada por juristas e pela militância bolsonarista, mas defendida pelo governo federal. As críticas apontavam que o STF não poderia ter agido de ofício, ou seja, ter determinado a abertura de inquérito sem que tivesse sido provocado pela Procuradoria-Geral da República, como é a regra do Judiciário.
A Advocacia-Geral da União, porém, manifestou-se contra o arquivamento do caso. Nesta quarta, logo após a decisão de Moraes, a leitura de atores do Judiciário foi a de que o ministro traçou uma linha de até onde Bolsonaro pode ir.
Houve inclusive a avaliação de que o STF poderá autorizar diligências da PF nos próximos dias contra integrantes do esquema de fake news, para mostrar que não recuará.
Essa decisão não foi o primeiro recado do ministro ao Palácio do Planalto em relação à autonomia da PF. No mesmo dia em que Moro acusou Bolsonaro de interferir na corporação, na última sexta (24), Alexandre de Moraes determinou à PF que não troque os delegados responsáveis pelas investigações dos atos pró-ditadura e a de notícias falsas na internet.
Apesar de o presidente não ser oficialmente investigado, ele participou dos atos e, se houver indícios de que ele ajudou a organizar os protestos, poderá virar alvo das apurações.