Por Zelito Nunes
Eu, adolescente, nunca fui muito parado, apesar da timidez; sempre gostei de ter um empreguinho.
Nos tempos da Prata, o meu primeiro emprego foi na loja de tecidos de seu Toinho Bezerra, da cidade de Monteiro; era gordão, tinha um vozeirão e um coração do tamanho do mundo.
Muitos anos depois, veio para o Recife, onde montou a Lanchonete Baúxa, ali perto do Clube Internacional, lá fez vários amigos, alguns deles amigos meus, hoje.
Bom, na loja de seu Toinho – que ocupava a garagem de um sobrado onde a gente morou –, na Prata, eu era enrolador de peças de tecido, quando a feira acabava; não tinha salário, mas tinha elogios de seu Toinho, que era também amigo do meu pai.
– “Quando você crescer, vai ser meu caixeiro” – era esse o provento que recebia dele e que me deixava profundamente orgulhoso, mil léguas na frente dos outros meninos da minha geração.
Afinal, o dinheiro não é tudo…
O segundo emprego, esse já remunerado, era alugando duas velhas bicicletas Gulliver, de um camarada chamado Paulo do Balanço, que me entregava um relógio e as duas bicicletas: eu ia alugá-las pra matutada levar mais queda no barro duro das ruas da vila do que pra passear.
Eu ficava ali, meio dono do mundo, com aquele relógio de pulseira de metal que dava para envolver a minha cintura de tão grande; eu, ali, todo fofo, cobrando o “tempo” de corrida pra matutada.
Recordo que, quando findava a feira, estava com aquele tufo de “couros de rato” no bolso. Paulo chegava, eu entregava o relógio, as bicicletas e a grana.
Fazia um pequeno relatório dos baques dos matutos, ele me pagava e lá ia eu pra casa, depois de mais um dia de labuta.
Quando cheguei a Monteiro, em 1960, fui procurar a Igreja como fonte de salvação; o padre João Honório, que conhecia a minha família, me colocou como coroinha, juntamente com Carlos Alberto Batinga, ainda hoje meu amigo, engenheiro e deputado pela Paraíba.
Com precária habilidade para as coisas celestiais, nunca consegui passar de coroinha na paróquia, isso tudo atrelado a uma terrível falta de coordenação motora que me acompanha até hoje.
Menino, eu vivia com os joelhos cheios de feridas de quedas e os dedos trilhados de bater nas coisas.
Bom, vai aí uma historinha que nunca tinha contado a ninguém, até hoje, e acho que ela estava até esquecida em algum canto da memória, mas penso que vale a pena contar.
Foi o seguinte: como coroinha, as tarefas que me davam era pegar brasas no hotel de Pedro Fogão, que ficava ao lado da Igreja, pra colocar no turíbulo, que eu mesmo balançava em determinado momento da missa; desajeitado, foi não foi, eu sem querer acertava num batente do altar e era brasa pra todo lado.
Na época, eu acumulava funções e era também acendedor das velas no altar; numa dessas, quase acontecia uma tragédia de proporções inimagináveis.
Eu, sozinho, lá em cima do altar – que era um pouco alto –, estava acendendo as velas pra missa das sete da noite, quando, no meio daquele emaranhado de santos, eu desastrado como era, sem querer, taquei o cotovelo na caixa dos peitos da padroeira. Logo ela! Na hora, não sei o que pensei, só sei que a visão que tive foi da santa – que tinha os braços abertos –, na direção do chão; estava lá de braços mais abertos ainda, procurando uma coisa pra se agarrar.
Não posso pensar noutra coisa, senão num milagre, que foi a minha atitude de defesa, abraçando-me com ela, que ia se espatifar no chão, com toda certeza.
Fiquei por um tempo tremendo, ali em cima, e o coração querendo sair pela boca, mas agarrado com ela, que, finalmente, aquietou-se; eu a arrumei direitinho ali, no seu lugar, desci, olhei se tinha alguém vendo aquilo: não tinha ninguém. Desci com cuidado e nunca mais subi naquele altar.
Até hoje fico imaginando qual seria o destino de um coroinha que derrubou e quebrou a padroeira da sua cidade.
O certo é que eu nunca contei isso a ninguém, nem ao monsenhor Honório, em confissão.
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Do livro “No sertão onde eu vivia”