Depois dos hospitais, dos prontos de socorro e das Unidades Básicas de Saúde, agora até os médicos do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) de Manaus estão sendo obrigados a fazer a dura escolha de decidir quem vive e quem morre nesta cidade de quase 2 milhões de habitantes duramente afetada pelo novo coronavírus. Sem capacidade para atender todos os chamados e sem local adequado para levar pacientes graves por conta da lotação dos leitos de UTI, profissionais do Samu passaram a adotar no dia a dia protocolos de atendimento usados apenas em situações extremas, como nos casos de acidentes graves com múltiplas vítimas.
A prioridade agora é dada àqueles que tem mais chance de sobreviver e não aos que estão em estado mais grave. “É como uma guerra, preciso focar meus esforços em quem tem melhores condições de evoluir bem e reduzir meus esforços para aqueles que tem poucas chances de vida”, conta Domício Melo de Magalhães, diretor médico do Samu de Manaus. “É triste, mas é assim que está sendo”.
Desde que os casos de Covid-19 começaram a ganhar contornos de tragédia aqui em Manaus o Samu adotou novas diretrizes na sua central de regulação, a área onde médicos treinados definem quando e qual tipo de atendimento será feito. “Se a pessoa consegue falar, não mandamos mais ambulâncias”, conta ele. “Estamos tentando concentrar nosso efetivo para atender aqueles que estão em situação muito crítica, com falta de ar extrema, em que se nada for feito, a pessoa morrerá”, diz Domício, ele mesmo um médico que continua atuando nas ruas de Manaus a bordo de uma UTI móvel do Samu.
Práticas tradicionais também foram alteradas em meio a crise. Antes, qualquer possibilidade de vida era vista como válida, possível. Agora não. “Tudo mudou com a Covid-19. Antes se eu chegasse em uma residência e encontrasse um idoso em parada cardio-respiratória eu tentaria a reanimação por até 40 minutos”, diz ele. “Mas hoje apenas atesto o óbito, porque se eu tentar reanimá-lo e houver retorno espontâneo do pulso, não tenho para onde levá-lo, não haverá uma UTI para ele ser cuidado, é tudo muito difícil”, conta Domício, que já se acostumou a ouvir histórias de colegas que assistiram pacientes com grave falta de ar morrerem nas ambulâncias porque simplesmente não havia leitos com respiradores nos hospitais de Manaus para recebê-los. “É duro”.
Elaine Bentes Carneiro, de 55 anos, ligou para o Samu na manhã dessa quinta-feira quando percebeu que sua mãe, a aposentada Francisca Ribeiro Bentes, de 75 anos, não estava conseguindo respirar. Francisca já vinha apresentando sintomas da Covid-19 há 15 dias, mas a situação se agravou no início dessa semana. “Na segunda-feira fomos ao hospital, mas disseram que ela estava bem, estava conseguindo respirar e nem médico nos deixaram ver”, contava ela na manhã de quinta. “Ainda ficamos lá esperando, mas nada, ninguém nos atendeu”.
Ontem, quando acordou, Francisca começou a ficar mais ofegante que o normal. Reclamou que não conseguia respirar. “Fizemos inalação nela, mas logo a boca dela começou a se contorcer, ficar roxa, acho que foi ai que ela morreu”, contava Elaine, enquanto era informada pelo médico do Samu sobre os trâmites legais para organizar o funeral de sua mãe. “Chegamos tarde, não houve tempo, uma equipe de enfermagem estava aqui antes de nós, mas ela já estava em parada cardíaca-respiratória por mais de 40 minutos, ai é irreversível”, contava o médico David Saback do Samu. “Impressiona muito o aumento dessas mortes em casa, em um dia contamos o chamado para nós do Samu atestarmos 25 óbitos”, dizia ele.
Com os hospitais e prontos-socorro lotados, o Samu se transformou na primeira linha de combate nessa guerra sem vencedores. São batalhas cada vez mais difíceis de serem travadas, tanto pela gravidade dos casos que enfrentam quanto pelos empecilhos colocados para tratar os pacientes de Covid-19. Em uma cidade em que a temperatura mínima raramente fica abaixo dos 24 graus e as máximas superam com facilidade os 30 graus, usar equipamentos de proteção pessoal são uma dificuldade ainda maior para esses profissionais.