JOSÉ BORBA FILHO (ZÉ BÓIBA) – Por Zelito Nunes

Chegou à Prata, nos anos 50 e foi prosperando no ramo de compra de algodão e cereais, até se tornar um dos homens mais influentes do lugar. Morava no único sobrado que havia na vila, era vaidoso gastador e generoso. Nas novenas do mês de maio, mês de Nossa Senhora, era comum cada noite ser patrocinada por um dos figurões do lugar, onde a paróquia e o padre sem esquecerem que o dinheiro também traz felicidade, promoviam além das celebrações sacras, as ditas profanas com direito a leilões de carneiros, bodes, galinhas assadas e até jerimuns; além das tradicionais salvas de foguetões e bacamartes.

Vaidoso como era, Zé Boiba dava a carga toda na sua noite. A noite de Zé Borba era uma festa à parte, a fachada da igreja era ornamentada de luzes e cordões e mais cordões de papeizinhos azuis brancos e vermelhos, além da praça de guerra promovida pelos estampidos dos foguetões e bacamartes. Era festa pra todo mundo, menos pra mim que morria de medo de tiros (ainda hoje morro) pequeno magro e feio ficava me entrelaçando nas pernas da minha mãe, feito um cachorro vira-latas com medo daquele tiroteio. Lembro-me da sua preocupação em amenizar o meu sofrimento, tentando tampar os meus ouvidos com a sua mantilha.

Pois bem, um certo dia a vaidade de Zé Borba cruzou com a sagacidade de um matuto sabido que morava ali perto na ribeira de São Francisco, chamado Miguel Leopoldo. Miguel era um cigano nas atitudes e também na aparência, era magro alto, com enormes bigodes cobrindo os cantos da boca. Usava um chapéu grande, botas de cano longo e camisas quadriculadas ao estilo dos “cowboys” americanos. Era antes de tudo um “trocador de cavalos” e jamais entrava num negócio em que não tivesse a certeza de que ia “lascar” o outro. Diziam que ele chegava ao requinte de pintar com listras, as patas de velhos e inúteis pangarés para dar-lhes um certo ar de nobreza e conseqüentemente aumentar-lhes o valor.

O grande poeta e compositor Zé Marcolino, filho da terra, era antes de tudo um cronista nato e conhecedor das manhas e malandragens de Miguel e outras figuras dali, que de matutos só tinham o nome. Contava que um dia, depois de suas andanças com Luiz Gonzaga, estava na Prata para rever os amigos e beber daquelas águas caririzeiras, quando encontrou Miguel, com uma proposta tentadora:

– “Maicolino”, eu tô pra vender um animal de raça a Zé Bóiba, e se eu fechar negócio nós vamos tomar umas e outras e matar a saudade.

E, de fato, foi procurar Zé Borba que se encontrava sentado numa espreguiçadeira na calçada do seu sobrado, contemplando naquele fim tarde a feira da Prata que também estava terminando. Miguel montando um velho e cansado burro fazia à custa de muita espora o animal se esbaldar em evoluções na frente do comerciante que já queria a todo custo adquirir tão valioso animal.

O desfecho dessa história eu deixo para o genial poeta paraibano de Guarabira, Chico Pedroza que, mesmo sem haver conhecido nenhum dos três personagens nela envolvidos, traçou em versos uma descrição perfeita dos fatos. Eis aí o “trocador de cavalos”:

O TROCADOR DE CAVALOS

Quantas figuras marcantes
Habitam nossa lembrança
Fatos que aconteceram
Quando a gente era criança
Estão em nossa memória
Fazendo parte da história
Duma época que passou
Caminhando ao nosso lado
Fantasiando o passado
Que o tempo não apagou.

“EM VIDA, VERSOS E VIOLA”

Zé Marcolino escreveu
A história de um caboclo
Que com ele conviveu
Nas terras do Cariri
Na antiga Mugiqui
Que hoje é Prata e cidade
Esse matuto sem soldo
Era Miguel Leopoldo
Trocador de qualidade.
De mediana estatura
Dono de um vozeirão
Sua voz se confundia
Com o eco de um trovão
Nunca freqüentou escola
Mas tinha em sua cachola
Algo que hipnotizava
No lugar aonde chegasse
Abrisse a boca e falasse
Ligeiro impressionava.
De chapéu de abas largas
Lenço envolto no pescoço
Botas limpas, roupa cara,
Algum dinheiro no bolso.
Era um “cow-boy” do sertão
Se selasse um barbatão
O marruá marcharia
Faceiro, acima da média,
Só no balanço da rédea
Que Miguel nem se bolia.

Seus arreios refletiam
O brilho de seus metais
Nas cacimbas e paredes
Das casas dos arraiais.
Deixemos Miguel um pouco
Pra falar noutro caboclo
Que na vila apareceu
Zé Borba Filho era o nome
Desse homem de renome
Que o Cariri acolheu.
Chegou prestando serviço
Ao povo da região.
Montou casa e armazém
Para comprar algodão,
Mamona e outros produtos
Trazidos pelos matutos
Que apareciam na feira.
Foi um homem respeitável.
Um defensor incansável
Da gente caririzeira.
Por tudo quanto era bom
Tinha um gosto especial
Super-relacionado
Com aquele pessoal
Dava crédito aos mais fracos
Confiava nos velhacos
Pra falar no nome dele
E tinha um jeito de dizer
Quando Zé Boiba morrer
A semente vai com ele.

Um dia Miguel Leopoldo
Soube que Zé Borba havia
Comprado uma fazenda
E que nela pretendia
Criar animais de raça
Miguel arranjou na praça
Um burro grande, ajeitado,
Como quem faz por capricho
Deu uma pisa no bicho
Até deixá-lo azougado.
Depois botou os arreios
Riscou pra lá e pra cá
E se mandou para a vila
Dizendo eu descolo já.
Quando entrou no arraial
De cima do animal
Disse pra Zé Marcolino:
– Compadre se eu descolá
Hoje a gente vai tomar
Uma de juntar menino.
Daí começou passar
Tirando fogo do chão
Fazendo mil piruetas
Na frente do casarão
Que Zé Borba residia
E agora em companhia
De um neto se balançava
Sentado numa cadeira
Coberto pela poeira
Que o burro levantava.

Foi se sensibilizando
Com o que presenciava
Miguel levantava a mão
O burro se apragatava
Zé Borba não agüentou
Abriu a boca e gritou
Ô burro condenado
De quem foi esse Migué?
Foi uma promessa Zé
Que eu fiz o ano passado.
Devido um cavalo ruim
Que eu apanhei de um cigano
Pedi pra deus me mostrar
Um bicho bom esse ano
Mas Deus dobrou a pedida
Trouxe um fora de medida
Esse danado tem asa
Vejo a hora ele avoar
E vai pra qualquer lugar
Como quem volta pra casa.
Zé Borba já se queimando
De vontade de apanhar
O animal de Miguel
Tornou a lhe perguntar
Ô Migué esse araponga
Sendo uma viagem longa
Será que aguentará?
Miguel disse isso é conversa
Viagem só lhe interessa
De vinte léguas pra lá.

Só pra tu ter uma idéia
Minha feira é Jatobá
Do Brejo essas vinte e duas
Léguas daqui até lá
Ele tira num galope
Nem pára e nem dá um tope
Nas pedras dos carrascais
É um animal de fé
Só falta dizer Migué
Que tu quer que eu faça mais.
Ô Migué e a passada
Desse animá é macia?
Migué disse ternontonte
Operaram minha tia
E ontem ela veio do “hospitá”
Montada nesse animá
Hoje manheceu caminhando
Contente e dando risada
Precisa dizer mais nada
Aí foi se retirando.
Zé Borba pulou nas rédeas
E disse pode descer
Do animá, e me diga
Se o burro é pra vender
Miguel com todo cuidado
Se fez de desinteressado
Depois disse ainda não
Se fosse eu vendia a ti
A seu Boné que é daqui
Ou o Major Napoleão.

Zé Borba passou das nuvens
Quando se viu comparado
Com os dois homens mais ricos
Que havia no povoado
Me vende o burro Migué
Diga o preço quanto é?
Vamo, fale duma vez
Ta certo Zé Boiba, pronto,
Eu vendo por quinze conto
Zé Borba disse dou seis.
Nesse tempo um animal
Puro, campeão de raça,
Se comprava até por três
Alçi ou em outra praça,
Miguel pensou ta danado
Me diga se ta comprado
Por doze conto de réis
Onze seu Boné me paga
Já pediu deixando a vaga
Pra Zé Borba botar dez.
O homem fechou os olhos
E respondeu eu dou dez
Miguel disse ô camarada
Tu me deixasse de pés
Dois fios de lágrimas quente
Desceram suavemente
Naquele rosto ladino
O homem passou-lhe as notas
Miguel enfiou nas botas
Foi beber com Marcolino.

Pra terminar esse burro
Nas mãos de seu novo dono
Passava o dia escorado
Cansado, morto de sono,
Na porta do armazém
Ruim que não prestava nem
Pra carregar jerimum
Porém como bom ficou
Só porque quem o comprou
Era fora do comum.
“EM VIDA, VERSOS E VIOLA”

Deixe seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode gostar