Tinha 11 anos, na Patos de 1968, quando disse à minha mãe:
– Vou botar um tabuleiro.
– O quê?
– Botar um tabuleiro.
– Tá louco? Cuide de estudar!
Mas a verdade é que botei, à revelia dela. No outro dia, lá estava eu, na casa de tia Tecla, pedindo dinheiro para comprar um tabuleiro; invenção de Antônio e Arnaldo, dois colegas da Peregrino de Araújo, cujo pai tinha uma bodega no mercado. O pai deles era quem sortia os tabuleiros de todos os meninos que vendiam bombom na feira de Patos.
Tia Tecla não me deu todo o dinheiro: deu-me somente 50%; o restante, eu que me esforçasse para pagar, com o dinheiro da venda de jornais ao quilo; ela, que era assinante de todos os jornais da Paraíba e do “Diário de Pernambuco”, me daria farta “munição”.
Comprei o tabuleiro: 50% na hora e os demais 50 pagaria com o apurado dele e a venda dos jornais.
Não dormi naquela noite. Alisava o tabuleiro como a um filho, que – segundo meu pensamento – proporcionaria a minha independência; o fim de todas as privações. No dia seguinte, o tabuleiro foi pintado de verde-abacate: a única tinta disponível em casa. Um verde “cheguei”; mas, segundo diziam, tabuleiro é pra chamar a atenção mesmo.
O pai dos meus amigos já citados encheu o tabuleiro de mercadoria. Dava gosto ver o compartimento estreito de cigarro, cheio. “Cigarro não dá lucro, mas é o chama”.
E começou minha rotina de “comerciante”: durante o dia, no mercado; à noite, na frente do Cine Eldorado. O tabuleiro ia a mil, vendendo bem, apesar da minha timidez.
Notei, no entanto, que apurava, apurava, e o dinheiro não me sobrava. Parte pela minha moleza para ser comerciante:
– A quanto o confeito pif-paf?
– A quatro por cem.
– Faz cinco?
– É, leve…
Comerciante jamais pode ceder no preço, assim tão facilmente; eu cedia por timidez, mas meus colegas achavam que eu estava querendo passá-los para trás.
Quem estava me passando para trás mesmo era o senhor (não consigo lembrar o nome) que me abastecia. Nem bem o estoque chegava na metade, ele enchia, novamente, o tabuleiro, e a minha dívida aumentava e nunca terminava.
Um dia, percebi que estava sendo passado para trás e não comprei mais a ele. Afastei-me dos filhos dele e dele, com o intuito de juntar dinheiro e resgatar – à vista – minha dívida.
Ele não gostou da ideia.
– Como? Vai ficar com o tabuleiro vazio assim?
– Vou.
– Você tá louco. Vão mangar de você. Está comprando na distribuidora, não é?
– …
– É, diga a verdade. Você vai se arrepender. Um dia volta, e eu não vendo mais nada a você.
Não estava comprando na distribuidora, mas iria fazê-lo. Meu tabuleiro, coitado, fazia pena. Tudo vazio. Fui à distribuidora, comprei um pacote de pif-paf, à vista. O tabuleiro estava – como disse – vazio. Mas havia me livrado daquele Paulo Honório (personagem de Graciliano) sem coração.
A turma realmente mangava: “Cadê o cigarro?”; “Cadê o chiclete?” “Tabuleiro mais pobre!…”. “Não, prefiro comprar a outro.”.
Apelei, então, para uma irmã que morava em João Pessoa. Contei-lhe a situação. Ela mandou – de graça – uma série de bombons diferentes; até uns drops que fizeram o maior sucesso em Patos, já que na cidade não havia daquele tipo.
Encontro meu antigo verdugo: “Tabuleiro cheio, hein?”. “Ingrato. Dei a mão a você, e você foi comprar confeito na distribuidora. Precise de mim outra vez, para ver…”.
Meu tabuleiro fez sucesso enquanto a novidade dos drops durou. Mas cadê o cigarro? Cadê o chiclete ping-pong? Minha irmã, ao mandar o presente, não pedira minha opinião e mandara apenas “chiclete de caixinha”. Ninguém no mercado gostava de “chiclete de caixinha”, a não ser um rapaz chamado Bodim, proprietário de um balcão. Bodim me comprava, diariamente, e era fiel a mim.
Meu tabuleiro ia bem, se recuperando, até que conheci minha primeira pseudo-namorada: Conceição. Comecei a ter vergonha do meu tabuleiro. Agora com 12 anos, quando estava na frente do cinema e Conceição apontava na esquina, eu fazia carreira para casa. Meu tabuleiro “quebrou” e eu nem ganhei Conceição.