Após quase três meses de pandemia de covid-19 é hora de definir os impactos da doença no calendário das eleições municipais deste ano, segundo o atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso. Patrono do Brazil Forum UK, evento que começa nesta segunda-feira, 15, organizado pela comunidade de estudantes brasileiros no Reino Unido cujo tema este ano é “E agora, Brasil? Alternativas para os múltiplos desafios”, Barroso será o entrevistado do dia 10 de julho sobre a importância do combate às fake news e os desafios de se realizar eleições nos 5.570 municípios brasileiros em pleno surto do novo coronavírus. Neste entrevista exclusiva ao Estadão, o ministro antecipa os planos do TSE, que preveem o adiamento do pleito e novas regras de votação. Veja os principais trechos:
Ministro, o senhor considera que agora já é a hora de se decidir se as eleições municipais devem permanecer em outubro?
Acho que está chegando a hora de se ter uma decisão sobre isso. Como isso foi encaminhado: eu me reuni por videoconferência com médicos de diferentes especialidades altamente respeitados nas suas áreas. Todos eles opinaram no sentido da conveniência de se adiarem as eleições por algumas semanas. Pela percepção que, possivelmente em setembro, a curva da doença já estaria decrescendo. Como a gente precisa programar isso com alguma antecedência, sugerimos adiar por algumas semanas. Mas a decisão é do Congresso. A sugestão do TSE é uma janela que vai de 15 de novembro até 20 de dezembro. Seria um prazo limite para o segundo turno, para que possamos dar posse até o dia 1º de janeiro. Portanto, eu transmiti essas informações dos médicos para o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e para o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Eles nos pediram que reuníssemos os médicos numa videoconferência para reiterar a posição deles aos líderes dos partidos, o que está previsto para ser em breve. E aí, diante dessas informações, o Congresso deliberará.
Resolvida a questão da data, a outra preocupação que existe é em relação à segurança dos eleitores em função da pandemia. Muitas propostas foram feitas: estender o horário de votação, determinar um horário para idosos. Como o senhor vê essas propostas? É preciso analisar um novo jeito de se votar esse ano?
Algumas dessas propostas fui eu mesmo que lancei para debate público. A ideia de estender o horário é muito provável que seja encampada, fazermos possivelmente de 8h às 20h. Com isso, ganharíamos três horas. Tudo envolve logística. Quando você estende o prazo, as pessoas têm que trabalhar mais tempo, talvez ter mais uma refeição. Recomendarmos, darmos preferência a faixas etárias por horário para evitar aglomeração, também é uma ideia colocada. Eu já pedi para verificar a concentração por idade, para saber como dividir. Mas possivelmente as pessoas mais idosas votariam na primeira hora da manhã. Tradicionalmente há uma concentração nas primeiras horas e uma concentração próxima ao encerramento e muita dispersão durante o dia. Para evitar aglomerações, vamos tentar demarcar horários e recomendar fortemente que as pessoas sigam esses horários. As eleições em dois dias tem dois problemas. O primeiro é que encarece muito ter mais uma dia de eleição, você teria que ter alimentação para 1,8 milhão mesários. E nós temos um convênio com as Forças Armadas relativo à guarda das urnas que precisaria renovar por mais um dia. Estamos falando de um custo que pode chegar a R$ 180 milhões, num momento em que o País não está com disponibilidade de recursos. O segundo problema é a segurança das urnas durante a noite. Talvez essa ideia seja mais difícil.
E os cuidados com a saúde?
Estamos ouvindo os especialistas para preparar uma cartilha com o passo a passo das eleições: desde quando o eleitor chegar à seção eleitoral até a saída dele. Coisas básicas como não levar a mão à boca, ao nariz, aos olhos. O eleitor vai ter que votar e, em seguida à votação, ter um servidor de luva que dará um jato de álcool em gel para limpar a mão. O álcool em gel tem que ser depois do voto, porque senão estraga a urna e a biometria. Assim que tivermos a data confirmada, vamos investir energia na cartilha. Tudo ouvindo os profissionais. Sou um sujeito que sou contra o achismo, a favor do profissionalismo.
Como o TSE planeja combater fake news nestas eleições? Já há alguma ação específica pensada?
Certamente. Mas o protagonista no combate às fake news não pode ser a Justiça Eleitoral. A própria caracterização do que sejam fake news não é singela. Portanto, o TSE ou a Justiça não desejam ser um censor privado do debate público. Queremos controlar as fake news menos pelo conteúdo e mais pelos mecanismos de difusão. Contamos, em primeiro lugar, com a participação das plataformas tecnológicas. As principais, para esse efeito, são WhatsApp, Twitter, Facebook, Instagram e Google. Vamos conversar individualmente com cada uma delas. E e eu já fiz uma conversa preliminar essa semana com o WhatsApp — que, do ponto de vista eleitoral, talvez seja o de maior repercussão — pensando em como monitorar e neutralizar robôs e comportamentos inusuais de retransmissão e reenvio de mensagens. Eles já reduziram o número de reencaminhamentos possíveis, baixaram de 20 de 5, e se comprometeram a pensar outros instrumentos para impedir a circulação de fake news. Os protagonistas do combate às fake news vão ser, em primeiro lugar, as próprias plataformas. Não pelo controle de conteúdo, mas com uso de tecnologia para impedir comportamentos inusuais, como robôs e reenvios em massa. O segundo protagonista vai ser a imprensa. Estamos contando com um revival da imprensa profissional, que é a que se move por princípios éticos e sabe separar fato de opinião e sabe filtrar a quantidade de barbaridades que tem circulado nas redes. E, em terceiro lugar, o TSE vai fazer ele próprio uma campanha de esclarecimento à população para terem uma leitura crítica do que recebem e não fazerem com o candidato dos outros o que não gostariam que fizessem com o seu. Cumprir a regra de ouro de não repassar falsidades. A intervenção do Judiciário acaba sendo muito limitada, para não se tornar uma censura privada.
Nesse sentido, o sr. defende o projeto em tramitação no Senado? Ele quer proibir robôs, por exemplo.
Eu acho que é preciso reagir às fake news e às campanhas massivas orquestradas e financiadas contra a democracia. As democracias têm que se manifestar em legítima defesa. A mim não me cabe me manifestar sobre um projeto de lei específico. Mas a ideia de se enfrentar de preferência com mecanismos tecnológicos, e não com o controle de conteúdo, essa ideia tem a minha simpatia.
Uma das críticas a esse projeto é que a definição do que é desinformação não estava clara. O senhor ou o TSE têm uma definição do que são as fake news?
Bom, a resposta é sim e não. Em teoria, sim. Quer dizer, campanha de desinformação é a divulgação deliberada de informação sabidamente falsa. Esta é a definição. Fake news é um apelido. Eu posso definir pra você o que é uma campanha de ódio: é você fazer ataques preconceituosos, discriminatórios ou racistas a grupos vulneráveis da sociedade. Definir em teoria, é fácil. Nos casos concretos, é menos fácil…
O senhor se considera uma vítima de campanha de ódio? Ou a instituição? Sofre com isso?
Eu pessoalmente não sofro. Não que não possa ser vítima de ódio, mas não é o que eu tenho no meu radar pessoal. Acho que a crítica ao Tribunal é legítima. O STF arbitra conflitos delicados entre poderes. Decide questões em que há vencedores e perdedores, portanto há pessoas insatisfeitas, inconformadas. Quem quer que se disponha a se aventurar no espaço público tem que se preparar para conviver com a crítica verdadeira e construtiva. Deve ser capaz de auscultar a sociedade. Mas o poder que o Supremo exerce não é um poder em nome próprio. Ninguém, em uma democracia, exerce poder em nome próprio; todo mundo exerce poder em nome do interesse da sociedade. Eu tenho que ter olhos de ver e ouvidos de ouvir a sociedade. O que me parece que se tornou perigoso e precisa ser enfrentado são as campanhas maciças baseadas muitas vezes em falsidade e financiadas por grupos radicais para destruição das instituições.
É o que vivemos hoje?
Eu acho que há guetos pré-iluministas que fazem esse tipo de campanha. Não acho que elas sejam campanhas que tenham chegado ao ‘mainstream’ (corrente de pensamento mais comum). Eu diria que as campanhas de ódio contra o Supremo, massificadas de falsidade, destruição, ataque, ameaças, estão em um gueto pré-iluminista. E isso é crime. Ameaçar um juiz e a família dele é coisa de bandido, não é coisa de militante.
A Justiça tem sido chamada de forma recorrente para definir questões de saúde nessa pandemia. A que o senhor atribui isso?
O ideal seria a pandemia ser combatida sob uma liderança nacional em aliança com Estados e municípios, respeitadas as peculiaridades locais com um mínimo de interferência judicial. Na medida em que essa liderança e coordenação nacionais não ocorreram, você passou a ter muitas visões particulares desse problema. Num País em que tudo se judicializa, você começa a ter a interferência do Judiciário. Eu acho que o Judiciário deveria ser minimalista nessa matéria. Vou falar pelo Supremo. Há um paradoxo no Brasil. Há uma queixa contra excesso de interferência do Supremo que, no entanto, muitas vezes é provocado pelos próprios partidos, pela própria política. Mas quando uma ação chega ao Supremo, o STF não pode dizer: eu não vou julgar isso, porque é muito complicado, muito difícil.
Em quais situações isso ocorreu?
A questão de saber se os Estados e municípios teriam competência para também atuar em relação à pandemia, por exemplo. A resposta é sim, tá na Constituição. O Supremo decidiu o que está na Constituição. Não é que proibiu o governo federal, o governo federal pode muitas coisas. Uma outra intervenção do Supremo, essa minha mesmo, foi na campanha “O Brasil não pode parar”. Todas as entidades médicas recomendavam isolamento social. Se essa é a recomendação médica mundial, evidentemente o governo não pode fazer uma campanha para fazer todo mundo voltar a trabalhar. O risco era que isso causasse um genocídio. Em nome do direito à vida e à saúde, que estão na Constituição, o Supremo suspendeu essa campanha. Houve uma outra MP que excluía a responsabilidade dos agentes públicos, salvo hipóteses de dolo, quando intencionalmente faz uma coisa errada, ou de erro grosseiro. Essa eu fui relator também. Eu acho até que tá certo — o administrador ter medo de decidir é péssimo. Mas fizemos uma coisa chamada de interpretação conforme para dizer que se considerava erro grosseiro deixar de observar orientações médicas e científicas acerca de alguma matéria. Houve questões em que o Supremo não pôde deixar de atuar. Mas acho que a pior judicialização que existe é a que interfere para mandar dar leito de UTI. No fundo, é uma judicialização que fura fila e desarranja o sistema. Portanto, eu acho que no geral o Judiciário deve exercer autocontenção em relação às questões envolvendo pandemia.
Em tese, o senhor é a favor de tribunais superiores compartilharem informações de inquéritos?
É pacífico na jurisprudência do Supremo que é possível compartilhar informações entre processos diferentes. Em tese, a resposta é sim. Se num determinado caso concreto ela se justifica depende do relator do caso.
O sr. diz haver “terraplanismo constitucional” em relação ao artigo 142. O que significa?
A Constituição é suficientemente clara no sentido de que as Forças Armadas não desempenham nenhum papel moderador, muito menos um papel hegemônico na democracia. As Forças Armadas têm funções muito importantes, vitais mesmo para o País, que estão bem definidas na Constituição. Não há dúvida sobre o papel das Forças Armadas. O que eu disse na minha decisão é que as Forças Armadas nesses 32 anos de democracia tiveram um comportamento exemplar de profissionalismo, patriotismo e institucionalidade e que ninguém deseja, nem elas próprias, que elas sejam arremessadas no varejo da política. As Forças Armadas não pertencem a nenhum governo e sim ao Estado brasileiro, sob a Constituição. Quem pede intervenção militar é o mesmo gueto pré-iluminista que defende o fechamento do Congresso e o fechamento do Supremo. Eu considero ofensivo às Forças Armadas quererem associá-las a quebra da institucionalidade, a interferência política, ou a golpe.
O general Ramos, no entanto, afirmou que não se pode “esticar a corda” e classificou como “casuístico” o julgamento da chapa Bolsonaro-Mourão pelo TSE…
Eu não li a entrevista e não sou comentarista da opinião de ninguém. O que eu posso dizer é que os limites da democracia estão traçados na Constituição. Quanto ao julgamento, o TSE não é um ator político, mas institucional, baseado no Direito. Nem os adversários nem os apoiadores do presidente devem esperar qualquer coisa que não seja um julgamento puramente técnico, com base nas provas. O TSE julga de acordo com a prova dos autos. Não há nenhum risco de o presidente ser quer protegido quer perseguido. Onde eu estou e onde estão os ministros do TSE faz-se a coisa certa. A lógica de um tribunal não é uma lógica de amigo ou inimigo, aliado ou adversário. A lógica de um tribunal é de certo ou errado, justo ou injusto, legítimo ou ilegítimo. A única coisa que eu posso assegurar a todos os lados dessa disputa é que assim será feito.