Roliúde Nordestina é a preferida para diretores brasileiros

CABACEIRAS (PB) – Há futuro para a “Roliúde Nordestina” em tempos de grave crise econômica? O projeto cinematográfico, menina dos olhos da prefeitura de Cabaceiras, vingará? Ou será aniquilado pela redução de investimentos e apoios estatais? O que restou da Roliúde Nordestina, depois do sucesso da microssérie, transformada em filme, O Auto da Compadecida, de Guel Arraes?

Para o gestor cultural Wills Leal, criador da Roliúde Nordestina, o complexo formado por gigantesco e vistoso letreiro, copiado de seu similar californiano (Hollywood), luminosidade abundante, casario colorido e pelo belo Lajedo do Pai Mateus, “vai sobreviver”. E cita seu trunfo: a Roliúde Nordestina desfruta de “imagem muito positiva no imaginário brasileiro”.

E o que garante esta “imagem positiva? Ele responde: “O nosso cenário privilegiado para filmagens, assegurado por belezas naturais, como o Lajedo do Pai Mateus, muita luz e baixíssimo índice pluviométrico, o menor do Brasil”. E cita outros atrativos: “O município é a capital brasileira do bode, animal que está no centro de sua mais importante festa popular, a do Bode Rei, e está agora investindo, também, no turismo de Cruzeiros”.

Ninguém pense que o sol derreteu os miolos do divertido Wills Leal, que comemora, com muitas festas e há meses, seus 80 anos. Ele não se refere a cruzeiros marítimos, paixão de turistas do mundo inteiro, desde que os transatlânticos, verdadeiros hotéis flutuantes, se tornaram moda. Ele se refere ao turismo religioso (e a cruzeiros fincados em pontos geográficos que atraem peregrinos).

Roliúde Nordestina
Mas e o cinema, razão principal do projeto criado dez anos atrás? Afinal, ele não criou uma Bodelândia, nem uma Cidade das Cruzes.

Wills não se dá por vencido: “A imagem positiva da Roliúde Nordestina é tão poderosa, que o projeto anda quase sozinho”. E enumera as últimas atividades audiovisuais e acadêmicas que tiveram a Roliúde Nordestina como cenário e foco.

“Você sabia que há oito trabalhos acadêmicos sobre a Roliúde Nordestina, e que um deles foi defendido na Sorbonne, em Paris?” E cita, satisfeito, o trabalho (tese de pós-doutorado) da professora brasileira Dina Martins Ferreira. Wills prossegue com nova indagação: “Você sabia que o ator Rodrigo Hilbert, do GNT, veio a Cabaceiras para realizar uma série de programas culinários (o marido de Fernanda Lima comanda, no Canal Globosat, o ‘Tempero de Família’)? “Pois veio”, diz, com risada larga no rosto. E veio para “ensinar os telespectadores a preparar pratos como a bodeoca (tapioca de carne de bode), o xixin de cabrita, o bode no buraco (iguaria singular, que consiste em enterrar a carne do caprino num buraco com água fervendo), a buchada de bode e o doce de xique-xique.

Mas e os filmes? Wills destaca, então, o mais recente: Beiço de Estrada, de Eliézer Rolim, protagonizado por Mayana Neiva (atriz e ex-Miss Paraíba, radicada nos EUA), Darlene Glória, Jackson Antunes e jovens atores paraibanos. Cita também Garoto, de Julio Bressane, e Por Trás do Céu, de Caio Sóh, ambos exibidos em festivais, ano passado. E lembra que, depois de Auto da Compadecida, o complexo da Roliúde Nordestina foi sede de “uns 20 filmes”, pois “já temos catalogadas quase 30 produções rodadas na região”.

Exageros à parte, há que se registrar que, depois do Auto da Compadecida, baseado na peça de Ariano Suassuna, foram, sim, realizados na região perto de dez filmes (curtas e longas), com destaque para Viva São João, de Andrucha Waddington, Madame Satã, de Karim Aïnouz, Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, Canta Maria, de Francisco Ramalho Jr, e Romance, de Guel Arraes.

A sede da Roliúde Nordestina já emprestou seu nome a um combativo curta-metragem, Cabaceiras (Ana Bárbara Ramos, 2007). O documentário, 100% paraibano, questiona o projeto defendido com tanta paixão por seu polêmico idealizador. Um de seus personagens é Zé de Sila, o terror da viúvas. Ou melhor, ex-terror, pois a idade avança e agora, ao ver uma câmara fotográfica, ele sai correndo para se vestir de… padre. Volta paramentado e avisa: “A Globo e o Sebrae exigem que eu apareça vestido com minha batina (como um de seus pequenos personagens)”. A “exigência” da Globo deve fazer parte do imaginário fértil de Zé de Sila. Já o envolvimento do Sebrae pode ser creditado à dica de algum servidor público, que tenha resolvido ajudar a incrementar os negócios do “ator”. No dia a dia, ele vive de pequeno comércio de cachaça e artesanato feito de couro de bode.

Ana Bárbara acredita que o projeto da Roliúde Nordestina é ambicioso demais e faz da população local “mera figuração”. Em seu filme, ela dá voz a muitos deles (além de Zé de Cila, ouve José Ramos, Maria Cicia e Paulinho Cabaceiras). Com os quatro cabaceirenses, abre uma cabaça, abundante na região, para mostrar que de dentro dela podem sair coisas muito boas. Inclusive ideias que ajudem a pôr fim “a falsas certezas sobre o Nordeste e sua gente”.

Na fachada da modesta loja de Zé de Sila (foto), o visitante depara-se com frase: “Amigo turista, seu lugar é aqui”. E o que o mais famoso figurante da Roliúde Nordestina tem a dizer sobre a produção de filmes no polo audiovisual? “O problema aqui é a seca. Há cinco anos não chove em Cabaceiras.” Leva os visitantes para verem bacias de plástico e um latão com água pela metade. É o que tem para abastecer todas as atividades domésticas de seu calorento cotidiano.

Enquanto Zé de Sila aguarda a chegada das chuvas, Wills Leal promete redobrar forças junto à Assembleia Legislativa da Paraíba, ao empresariado e às autoridades para que não deixem a Roliúde Nordestina perder fôlego. “Vamos revigorar projetos que já foram iniciados, como o Memorial Cinematográfico (que armazena modesto acervo de fotos, DVDs e depoimentos de cineastas e pesquisadores), e novas edições do Festival Digital do Semiárido. Otimista e incansável, ele arremata: “A Roliúde Nordestina só gera notícia boa para Cabaceiras e a Paraíba.

Entre na internet e veja quantas reportagens e documentários televisivos foram realizados no município!”.

‘É inegável a eficácia comunicativa do nome Roliúde, mas o projeto não tem a força nem de Bollywood’

A professora Dina Martins Ferreira, da Universidade Estadual do Ceará, estudou o projeto da Roliúde Nordestina em seu segundo curso de pós-doutorado, realizado na França (Universidade Paris V – Sorbonne).

Sua tese de doutorado (“Comunicabilidade Metafórica: Do Sensível à Designação”) dedica capítulo inteiro à criação “roliúdiana” de Wills Leal e dos cabaceirenses. Suas conclusões estão publicadas nos livros “Exclusão Social e Microrresistências – a Centralidade das Práticas Discursivo-Identitárias” (Ed. Cânone, organizado por Joana Plaza), e, em espanhol, em “De lo Femenino a la Política – Lenguaje, Identidad y Representación Social” (Editorial Académica Española, este da própria Dina).

A pesquisadora destaca “a eficácia comunicativa” da Roliúde Nordestina, mas vê com olhos críticos o projeto de nome tão chamativo. “Sem dúvida” – analisa – “o imaginário coletivo respalda o projeto, mas isto não quer dizer que seja um imaginário com efeitos positivos para o cinema brasileiro. Não podemos comparar o nosso cinema com o cinema hollywoodiano, pois seria somar azeite com água, que nunca se misturam”. Para a professora, a comparação é profundamente desigual até se o parâmetro for a Bollywood indiana.

“A referência à antiga Bombaim (Bo+lywood)” – avalia — “se processa apenas no plano do marketing, já que a Bollywood asiática se equipara em produção e potência econômica à Hollywood californiana”. Afinal, “numericamente, Bollywood produz mais filmes que a indústria norte-americana e, como esta, movimenta milionárias somas em dinheiro”.

Dina Ferreira conta que seu interesse pelo projeto paraibano foi motivado por uma de suas paixões acadêmicas: “o estudo das inovações de vocabulário, ou seja, o neologismo e a carga de significação que ele carrega”.

“Houve na criação da Roliúde de Cabaceiras” – explica – “substituição em termos fonéticas (som) do H, em inglês, para o R em português, fora o aportuguesamento de todo o termo Ro = Ho; li – lly=; u=woo; d = de”. Criado o neologismo, veio “a questão de marketing, pois evocar Hollywood vende e desperta a atenção em termos de eficácia comunicativa. Esta parece ter sido a intenção de Wills Leal”. E ele foi “bem-sucedido”, pois “despertou tanta atenção, que foram produzidas muitas matérias em jornais e emissoras de TV”.

A pesquisadora elogia a ousadia do idealizador do projeto, mas qualifica como “precipitada” sua compreensão de que a Roliúde Nordestina seguirá em frente, apesar da crise econômica que abala o país.

“Temos que lembrar” – insiste – “que estamos falando de indústria, se é que podemos chamar o cinema brasileiro (e a Roliúde Nordestina) de indústria, com propostas muito desiguais, inseridas em contextos totalmente diferentes”. Falar em sucesso comparando a experiência de Cabaceiras com outras indústrias “é cair no vazio”.

Dina Ferreira aborda “um outro lado importante da questão, o colonialismo”. Afinal, “países subdesenvolvidos se utilizam de ‘marcas’ de culturas desenvolvidas por falta de opção de chegar ao consumidor. Se de um lado privilegia o marketing, de outro reafirma o nosso subdesenvolvimento, por necessitar do glamour de outra cultura para estabelecer-se em outro contexto”.

A professora acredita no futuro do projeto paraibano, apesar da crise econômica. Como Wills Leal, diz que a Roliúde Nordestina tem saldo (e respaldo) positivo no imaginário brasileiro. Mas prefere ver “o projeto inserido num quadro de luta pela sobrevivência”.

E, para finalizar, propõe algumas interrogações como motes de reflexão: “Será que no Brasil a cultura caminha sozinha? Ou ainda há muito esforço para que suas realizações alcancem o popular? Será que a Roliúde Nordestina, em tempo de crise, não trava apenas luta para sobreviver? / MARIA DO ROSÁRIO CAETANO

FILMES ROLIUDIANOS:

São Jerônimo, de Julio Bressane (1998)
O Auto da Compadecida, de Guel Arraes (2000)
Viva São João, de Andrucha
Waddington, (2002)
Madame Satã, de Karim Aïnouz (2003)
Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes (2006)
Canta Maria, de Francisco Ramalho Jr. (2007)
Cabaceiras, de Ana Bárbara Ramos, curta (2007)
Romance, de Guel Arraes (2008)
Garoto, de Julio Bressane (2015)
Por Trás do Céu, de Caio Soh (2016)
Beiço de Estrada, de Eliézer Rolim (2017)

Estadão

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