O Professor Francisco Sarmento desafiou os que tentam desqualificar seu relato sobre precariedades da Transposição do Rio São Francisco que podem atrasar a chegada da água transposta ao açude de Boqueirão. O desafio: reconhece publicamente como legítima a desqualificação se for suspenso imediatamente o racionamento em Campina Grande, vez que os seus detratores garantem estar tudo bem e até marcam data (15 de abril) para normalizar o abastecimento da cidade.
“Afinal, se tudo está bem e se, no caso de Campina Grande, a água chegará em 15 de abril, como os mesmos declaram, por que fazer perdurar, para mais de meio milhão de pessoas, os malefícios de um racionamento tão severo, se o Açude de Boqueirão, também segundo os mesmos, armazena ainda 13 milhões de m³, volume suficiente para abastecer a cidade por pelo menos três meses?”, questiona Sarmento, ex-secretário estadual de Recursos Hídricos e um dos mais conceituados especialistas da área em que atua como engenheiro e Professor Doutor da UFPB.
O desafio de Sarmento, contido no desabafo reproduzido a seguir, veio em resposta às reações de quem procura descontruir a veracidade das suas constatações e alertas publicados neste blog na última segunda-feira (20) sobre problemas em equipamentos, barragens e canais da Transposição a partir da Estação de Bombeamento 5 (EBV 5). Entre outras consequências de tais problemas, vê-se a redução para pouco mais de 300 litros por segundo da vazão que chega a Monteiro, quando a promessa era de no mínimo 6 mil litros por segundo. Com volume tão reduzido, a água não tem força para engrossar a corrente do Rio Paraíba ao ponto de fazê-la chegar ao açude de Boqueirão nos prazos anunciados por autoridades estaduais e federais.
Confira a carta de Sarmento enviada ao Blog de Rubens Nóbrega.
Caro jornalista Rubens Nóbrega,
Sou brasileiro, paraibano, sertanejo. Nasci no lugar social comum a essas origens. Sei o que é sede e fome, mas tive a oportunidade de estudar, sempre em escola pública. Fiz mestrado e doutorado em Engenharia de Recursos Hídricos, e sinto profundo regozijo espiritual ao poder aplicar o que aprendi.
A primeira vez que ouvi falar da transposição do rio São Francisco, aos cinco anos de idade, foi em uma discussão familiar, quando se decidia se o trio pai, mãe e filho seguiria ou não o chamado governamental de povoar a Amazônia com nordestinos. A decisão de permanecer veio de meu pai que, acreditando que o Sr. Mario Andreazza conseguiria cumprir a promessa de realizar a transposição e livrar aquele agricultor da dureza do convívio desigual com a seca. A ditadura militar experimentava seus anos de milagre econômico e era difícil não acreditar naquilo. Ficamos.
No fim dos anos 1970, viemos para João Pessoa, onde cursei Engenharia Civil na UFPB. O tempo passou e, por alguma dessas inexplicáveis coincidências, em 1994, o engenheiro civil potiguar Rômulo de Macedo Vieira, designado pelo então Ministro da Integração Regional Aloísio Alves para coordenar os projetos de engenharia da transposição, convidou-me para elaborar, em parceira com outros colegas, os estudos voltados à justificação da quantidade de água que deveria ser trazida do Rio São Francisco para o semiárido setentrional, formado por Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
Tenho a honra de dizer que dediquei 14 anos da minha vida profissional a esse projeto, tendo recebido, dentre outras missões, a de defender tecnicamente a Transposição nos debates e audiências públicas ao longo dos governos Itamar Franco, FHC e Lula.
No governo Lula, fui convidado pelo saudoso Vice-Presidente José Alencar Gomes da Silva para chefiar a Assessoria Técnica da Vice-Presidência da República, com a missão específica de atuar na viabilização do projeto. Nesse período, os confrontos com os contrários ao projeto se tornaram mais vigorosos, pois estávamos diante da possibilidade concreta de a obra vir a sair do papel.
Ao longo de seis anos (2003 a 2009), vimos os obstáculos que historicamente jaziam contra a obra serem – um a um – vencidos, situação que somente pode se concretizar graças à força e à determinação políticas de um Presidente identificado com o povo e legitimado pelo voto.
Mas isso agora é passado.
Tenho relação passional com esse projeto e afirmo, sem exageros e sem qualquer reivindicação de mérito, que estou entre os que mais desejam ver as águas do Rio São Francisco chegando às nossas torneiras. Mas, há que se fazer uma distinção entre o inegável simbolismo histórico de as águas tão esperadas terem aqui chegado e a solução da crise hídrica.
É justo festejar esse simbolismo, mas sem nos iludirmos. A transposição precisa funcionar em sua plenitude, porque os paraibanos não podem esperar muito tempo. A situação do açude de Boqueirão e tantos outros já citados não permite uma longa espera. Inauguração, apesar de rimar com solução, não garante por fim à extrema crise hídrica que assola a Paraíba.
Não obstante essas evidências, por razões que não consigo entender, a repercussão na imprensa do relato que fiz na última semana incomodou algumas pessoas, que, embora numericamente minoritárias, vêm fomentando intervenções pontuais em veículos de comunicação, tentando desqualificar não apenas o meu relato, como também a minha pessoa.
Não conseguirão.
Ao longo de toda esta semana, recebi mensagens de apoio e reconhecimento, tanto de técnicos envolvidos com a área de Engenharia de Recursos Hídricos como de cidadãos sem proximidade com o assunto. As mensagens vieram de vários estados brasileiros, até de pessoas com quem, em um passado recente, tive acaloradas discussões públicas acerca da transposição.
Afirmo que não será nenhum neo-coronel que irá me envolver no teatro político deformador de temáticas cujo viés é estritamente técnico. Não careço de nenhuma lição sobre como funcionam os obscuros mecanismos motrizes de certas pessoas a quem a verdade não interessa, em particular, quando ela é ofensiva aos que patrocinam o seu exercício de ódio e a sua ocupação em denegrir reputações.
Sei, em meu íntimo: fiz o meu papel, enquanto técnico e cidadão. Apontei os problemas para que as soluções, a quem couber, sejam dadas.
Para os gestores públicos que declararam que o meu relato técnico, publicado pioneiramente por esse blog, é “tecnicamente sem fundamento”, assumo a desqualificação se o racionamento de água de Campina Grande e demais cidades do Cariri, a começar por aquela onde o Eixo Leste deságua – Monteiro – for suspenso imediatamente.
Afinal, se tudo está bem e se, no caso de Campina Grande, a água chegará em 15 de abril, como declaram, por que fazer perdurar, para mais de meio milhão de pessoas os malefícios de racionamento tão severo, se o Açude de Boqueirão, também segundo os mesmos, armazena ainda 13 milhões de m³, volume suficiente para abastecer a cidade por pelo menos três meses?
Gratas saudações.
Francisco J. Sarmento