Por Ramalho Leite
Lembro de “seu”Guilherme, o alemão, porte alto e curvado, sempre de paletó branco. Em Borborema, somente ele e doutor José Amâncio se vestiam assim. Já doente, residiu em um anexo à casa dos meus pais até o dia em que desejou voltar para sua família, no Recife. Alí, o seu pulmão afetado pela nicotina acumulada de muitos anos receberia melhores cuidados médicos. Meu pai foi levá-lo, de trem. Ele fizera de meu pai o seu sócio brasileiro desde que se estabelecera na cidade no ramo de ferragens e tecidos. Chegara em uma madrugada chuvosa, fugido da Vila de Moreno (Solânea) onde sua casa de comércio fora queimada em represália ao afundamento dos nossos navios na costa do nordeste. Em dois dias, foram quatro navios e mais de seiscentos mortos. Era agosto de 1942. No fim do mesmo mês, Getulio Vargas declararia guerra aos países do Eixo.
O alemão, que deixara sua pátria depois da Primeira Guerra,seria, na Segunda, uma das vítimas do patriotismo dos brasileiros, exacerbado pela agressão dos submarinos inimigos.Sob a proteção física do doutor José Amâncio Ramalho, o soba borboremense, e amparado legalmente pelo Juiz Mário Moacyr Porto, foi acolhido na Vila de Camucá (Borborema). Antes, ainda em Moreno, previdente, financiara uma loja para o meu pai, com o intuito de salvar um pouco do seu patrimônio. A casa de “seu” Arlindo escapou do fogo, e seu estoque foi transladado na escuridão de uma noite fria de agosto, servindo de base para novo comercio. No incêndio da casa do alemão, o que não virou cinzas foi levado pelos mais espertos. Menos o dinheiro em espécie, enterrado no quintal do seu estabelecimento.
Essa história eu a ouvi de meu pai, Arlindo Ramalho, e agora posso contar… Poucos dias depois do incêndio provocado, “seu” Guilherme chamou meu pai e indicou onde enterrara parte do seu capital, pedindo-lhe que fosse buscar as suas economias. Acondicionadas em caixas de charuto, essa “botija” de uma alma viva, foi recolhida e entregue ao seu dono. Na casa incendiada ficou a marca da ação silenciosa do amigo fiel. As autoridades da vila ficaram ouriçadas e atentas. Uma segunda missão seria dada ao meu pai. Um outro depósito fazia as vezes do “banco do alemão” e era sua maior fortuna, segundo confessou, sem nunca mencionar a quantia. Meu pai só teve tempo de desenterrar o precioso caixote. Na escuridão, alguns vultos o cercaram e declararam que aquele butim era “presa de guerra”:
-Vamos todos para a delegacia! Ordenou o delegado.
A energia da hidroelétrica do doutor José Amâncio só iluminava as ruas de Moreno, como das demais localidades servidas de luz, até as dez da noite. Sem lua, a escuridão era total. Entre a casa do alemão e a delegacia, um mistério envolveu esse achado. Quando abriram o depósito dos milhares de contos de réis amealhados pelo germano, apenas as moedas restavam. Os pacotes de cédulas evaporaram. “O meu maior dinheiro estava ali”, balbuciou seu Guilherme, conformado. Meses depois, o Estado Novo criou o Cruzeiro e deu à nova moeda o valor unitário de mil réis.Quem trocou o dinheiro velho pelo novo, cresceu na fumaça da “presa de guerra”.
Uma ordem judicial autorizou meu pai a recolher o que restou das lojas do alemão nas suas filiais de Araruna e Arara, se não me engano. Estou ainda em busca do processo judicial que deu origem a essa determinação do juiz Mario Porto.Sei dizer, porém, que muito pouco restou do patrimônio de seu Guilherme e dona Margarida.Meu pai, sócio do alemão e sob seu controle, chegou a ser um homem quase rico, até quando entrou na política…mas essa é outra história.